Por Ubiratan
Brasil, O
Estado de S. Paulo*

É o que se nota no
volume Contos Reunidos, lançado agora pela Editora 34.
Trata-se de uma seleção de 28 contos, desde o primeiro que escreveu (Como É Perigoso Entregar-se a Sonhos de Vaidade,
publicado em 1846 e até então inédito no Brasil) a O Grande Inquisidor, que saiu em 1880, um ano antes de
sua morte. Com organização e apresentação de Fátima Bianchi, professora da USP,
o livro oferece uma ampla definição de “conto”, pois inclui também breves
novelas, narrativas autônomas dentro de romances e peças jornalísticas com viés
ficcional.
“Encontramos
em sua obra uma realidade social e humana extremamente complexa, marcada pela
instabilidade, pela ruptura de tradições, pela destruição de antigos valores
morais e espirituais e a inexistência de valores alternativos”, observa Fátima
Bianchi, no texto de apresentação. “Segundo o estudioso russo G. K. Schénnikov,
ele percebeu que ‘não eram apenas as relações entre as pessoas, as formas de
prática social, os interesses que mudavam, mas também a noção do homem sobre si
mesmo e o seu lugar no mundo’. Daí sobressair-se em sua obra uma caracterização
da realidade tão aparentada do ‘caos’.”
Dostoievski foi
diretamente influenciado pelas agruras pessoais e especialmente pelas novas
relações sociais introduzidas pelo capitalismo que marcaram a Europa e a
Rússia, naquele século 19. Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em um
pequeno hospital de Moscou onde seu pai, homem carrancudo, trabalhava como
médico. A morte da mãe por tuberculose, 16 anos depois, provocou o início de
uma difícil relação com o pai. O sensível Fiodor sofreu com essa convivência,
que se consumou com um drama familiar: o assassinato do pai, por dois de seus
servos, quando o escritor tinha 18 anos.
“Dostoievski desde o
início procurou expressar um ponto de vista original sobre o homem, ao estabelecer
para si a tarefa de decifrar os enigmas de sua alma”, comenta Fátima. “Ele
anunciou várias vezes que o objetivo fundamental da suas aspirações era o
estudo do homem na sua essência profunda. Numa carta a Mikhail, seu irmão e
confidente, escrita aos 18 anos de idade, ele define a orientação básica de
suas futuras buscas criativas: ‘O homem é um enigma. É preciso decifrá-lo, e
ainda que passe a vida toda para decifrá-lo, não diga que perdeu tempo; eu me
dedico a esse enigma, já que quero ser um homem’.”
Essas tragédias
pessoais, de toda forma, levaram o jovem Fiodor a se apegar ainda mais à
religião. Mas Dostoievski jamais demonstrou, por exemplo, a ironia revelada por
Tolstoi pelos temas cristãos – o elemento mais importante da literatura de
Dostoievski é a liberdade espiritual e a possibilidade de escolha entre Deus e
o Mal. A culpa, no entanto, sempre esteve presente no caráter do escritor,
ciente de que o homem frequentemente fracassa ao fazer tal escolha.
“Incontestavelmente,
a compaixão profunda para com o sofrimento e a humilhação tornaram Dostoievski
um dos maiores escritores humanistas da literatura mundial”, afirma Fátima. “Há
uma sensação de dor presente em toda a sua obra, desde a primeira até a última,
até nas circunstâncias mais inusitadas, como um sentimento dominante, que surge
de um mal generalizado existente na sociedade, na natureza humana e em todo o
universo.”
Desde sua estreia na
literatura com Gente Pobre, em 1846, Dostoievski trabalhou com os
aspectos inaceitáveis do homem: os maléficos. Na primeira fase da carreira,
havia, como um constante pano de fundo, o socialismo utópico, de inspiração
cristã, que se expressa na paixão lírica pelos mais pobres. “Sem maiores
cerimônias, Dostoievski passa do humor e da farsa ao grotesco e ao sublime”,
afirma o também pesquisador Samuel Titan Jr., no texto da orelha do livro.
“Volta e meia, o resultado é desnorteante, tanto pelo engenho verbal como pelo
empenho encarniçado em chegar ao cerne humano e histórico das situações e
personagens em cena.”
Decisivo como
laboratório literário, o conjunto de contos revela a compaixão profunda para
com o sofrimento e a humilhação que tornou Dostoievski um dos maiores
escritores humanistas da literatura mundial. Contos
Reunidos traz
cinco textos totalmente inéditos no Brasil: Como É Perigoso Entregar-se a Sonhos de Vaidade (1846), Pequenos Quadros (Durante
uma Viagem) (1874), Plano Para uma Novela de Acusação da Vida Contemporânea (1877), O Tritão (1878) e Domovoi, conto inacabado que faria parte de Histórias de um Homem Vivido, mas Dostoievski não o
publicou em vida – o texto foi encontrado após sua morte.
CONTOS REUNIDOS
Autor: Fiodor
Dostoievski
Organização e
apresentação: Fátima Bianchi
Tradução: Priscila
Marques e outros
Editora: 34 (552
págs., R$ 89)
TRECHO
“Agora, estamos
entrando no vagão. Os russos da intelligentsia, quando estão em público e em
grande número, sempre são objeto de curiosidade para um observador interessado
em aprender, ainda mais numa viagem. Nos vagões, as pessoas dificilmente
conversam entre si; nesse sentido, são particularmente característicos os
primeiros momentos da viagem. Todos estão como que indispostos em relação aos
outros, todos se sentem desconfortáveis; trocam olhares de uma curiosidade
desconfiada e invariavelmente misturada com hostilidade, ao mesmo tempo, fingem
não notar e nem querer notar a existência uns dos outros.
Nos setores do trem
onde ficam os membros da intelligentsia, os primeiros instantes de localização
do assento e início da viagem são instantes de verdadeiro sofrimento,
impossíveis em qualquer outro lugar”." (De ‘Pequenos Quadros (Durante uma
Viagem)’)
Extraído de http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,livro-reune-28-contos-de-dostoievski-alguns-deles-ineditos-no-brasil,70001739048
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